domingo, 28 de agosto de 2011

Sincronicidade

As diversas ruas de saída do Shopping Recife possuem muitas coisas em comum. Alguns pontos são os constantes pequenos assaltos, e os pedintes. Os assaltos se dão frequentemente por meninos que usam bicicletas e roubam bonés e pulseiras de outros jovens que, frequentemente, se dirigem para o Shopping Recife. Os pedintes ficam em quase todos os sinais de trânsito que formam o entorno do Shopping. Um desses pedintes me chamou a atenção essa semana.

Sometimes I feel like I don't have a partner
Sometimes I feel like my only friend

Estava saindo do Shopping, de ônibus, e o veículo parou num sinal que dá para a Domingos Ferreira. Na calçada à minha esquerda, uma mãe sentada na calçada. Uma mulher com mais ou menos seus 30 anos (não se pode afirmar com certeza, em virtude do castigado rosto da mulher) e com, aparentemente, três filhos. Um deles muito novo, não deveria ter mais que 10 meses de vida. Os outros dois, maiores, recebiam trocados ao limpar vidros dos carros, atividade comum no Recife. Enquanto isso a mãe estava sentada no chão, com o bebê em seu colo.

Is the city I live in, the city of angels
Lonely as I am, together we cry

O bebê chorava muito, e a mãe tentava, com uma mão só, trocar sua fralda. A outra mão era usada para arrumar a blusa suja, que estava fora de lugar por causa do bebê, que a puxava constantemente. Enquanto isso, a mulher gritava a plenos pulmões para os outros filhos não pararem de andar entre os carros, para tentar conseguir algum dinheiro. Não obteve muito sucesso. O sinal parecia que tinha quebrado, e que ficaríamos eternamente parados ali. Muitas das pessoas que estavam na janela do ônibus - como eu - olhavam de forma petrificada para a mulher, e para o modo aparentemente rude que ela tratava o bebê.

A mulher e o bebê estavam sentados sob um papelão, para demonstrar algum sinal de limpeza. Mas tudo que não havia ali era isso. O menino tinhas as unhas pretas, sujas, e só o que aparentava assepsia era a fralda, que acabara de ser tirada do pacote. A sujeira de uma realidade que nos estapeia diariamente, mas que, com boas anestesias, estamos ficando cada vez melhores em suportá-la.

Nesse momento eu comecei a pensar em como chegamos a esse ponto. Em como uma distância de três metros é, simultaneamente, uma distância de mais de 400 anos de história. O rosto da mulher, sempre de sobrancelha arqueada, com raiva, pronta para alguma batalha que até agora ela parece não estar vencendo. E nem nós. Somos todos derrotados. Algo aparentemente sem volta.

O bebê continuava a chorar, e a mãe finalmente terminou de trocar sua fralda. Feito isso, ela o colocou sentado em seu colo, abriu uma sacola, pegou um pedaço de pão e colocou em sua boca. Ele mastigava com dificuldade, praticamente sugando o pão aos poucos, chupando o alimento. A mãe, agora com as duas mãos livres, voltou a ajeitar seu cabelo. A força lúdica da cidade e de seus problemas sociais se funde, de maneira inacreditável, com sua derrota e nojeira. Muitas vezes essas óticas diferentes não são analisadas, são escolhidas.

O sinal abriu, fomos embora.

It's hard to believe that there's nobody out there
It's hard to believe that I'm all alone

(...)

But I stay.

*Trechos em negrito da música "Under The Bridge", do Red Hot Chili Peppers.

domingo, 7 de agosto de 2011

O Curso de Inglês

Apesar de sempre termos uma relação difícil com o passado, não importando se ele foi bom, ruim, ou se teve ambos os momentos, ninguém pode negar que, algumas vezes, é muito bom sentir saudade. E principalmente quando ocorrem certas lembranças de coisas que estavam completamente apagadas de sua memória. Ou tão bem guardadas que você as julgava sem qualquer importância. Ou pior: que você se dá conta que lembrava delas todos os dias, religiosamente, mas com outra roupagem, não dando à lembrança o devido valor.

Uma lembrança que tenho muito viva em minha memória é a dos meus anos no curso de inglês. Eu era bem jovem e sequer pensava em problemas de relacionamento com amigos, neuroses sobre o futuro ou auto-afirmação. Pelo menos quando estava dentro daquela sala, todas as terças e quintas, das 15h30 às 16h45, durante mais ou menos 6 anos. Era um universo paralelo tão bom, tão sadio, tão engraçado, tão lúdico, que eu me sentia, regularmente, capaz de qualquer coisa dentro daqueles muros.

Parecia que eu usava uma roupagem nova sempre que a hora do curso se aproximava. Eu deixava as dúvidas e inseguranças dentro do armário, junto com minha roupa de ficar em casa, e ia para a aula com outra roupa: a da confiança, da distribuição de alegria e bons relacionamentos. Tudo era mais leve, tudo era mais saudável. Era tudo melhor. Desde o professor, fã de cavaleiros do zodíaco e um dos maiores exemplos de educadores que tive, o grande professor Ota, até os especiais de final de nível, quando fazíamos covers vergonhosamente ruins, mas que eram motivos de risadagens.

Como não lembrar também das paqueras de filmes de sessão da tarde que eu e meus amigos cultivávamos. Foi no curso de inglês que tomei meu primeiro fora. E lembrando de hoje, é engraçado ver como era tudo tão levado a sério, tão adulto. Me pergunto se hoje todos nós não continuamos cometendo esse mesmíssimo erro... Lembro como foi bom construir amizades com amigos apreciadores de Metal. Alguns intolerantes, engraçados. Outros abertos à opiniões, e igualmente engraçados. Também me recordo como era sair da aula, tomar aquele velho copo d'água e deixar as meninas na rua da casa delas. Isso uma atitude adulta e de um gentlemen, para um menino de 13, 14 anos.

Lembro como me senti quando soube que Ota era apaixonado pelo Red Hot Chili Peppers, e sabia tocar tudo em sua guitarra, quando ensaiava com sua banda "O Olho que Tudo vê". E de como em todo exerício que tínhamos que trabalhar a audição, lá estava Anthony Kiedis na fita cassete do som. Me dando conta agora, Ota deve ter sido o principal responsável pela minha idolatria pelo RHCP. e pensando mais profundamente ainda, ele deve ter sido o primeiro exemplo real de professor "ideal" que tive na vida, e que, a partir dali, já tenha feito eu me encaminhar pro universo da educação. Bem, ninguém é perfeito.

O encerramento do curso foi da melhor maneira possível: num hotel, em Recife, com todos nós recebendo nossos certificados, e batendo um papo com o Angra no hall do hotel. Angra que, na época, para nós, era o auge do Metal. Lembro de como estávamos curiosos para nos encontrarmos sem as roupas normais das aulas: bermudas, bonés, saias curtas, camisas velhas etc. Lembro de como foi uma despedida sem a menor ideia e peso de que não nos veríamos mais. Disso eu me arrependo. De ter dado pouco valor. Ou talvez eu esteja errando hoje, de dar valor demais aquilo. Vai saber.

Atualmente mantenho um contato tímido com duas pessoas daquela época. Daquela sala. Mas passo quase que diariamente em frente ao curso. E todos os dias sinto uma vontade incomensurável de adentrar aquele prédio de novo e sentir aquelas paredes: se o quadro de avisos está no mesmo lugar, se já trocaram de novo o local da secretaria, se ainda existe aquele pequeno jardim em frente a cantina. Se os professores são os mesmos. Farei isso. Resguardar aquela felicidade inocente e fantástica do fundo do baú. Ou do fundo da mente. Exercitemos nossas lembranças. Não nos esqueçamos delas.

Essa nostalgia eu faço questão de ter quase que diariamente.