quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Lama

A família era normal. Classe baixa, casal com mais de 25 anos de relacionamento informal e depois oficial. Os filhos também eram normais. Estudiosos num dia, preguiçosos no outro. Viviam num bairro perigoso da periferia do Recife. Tudo sempre parecia igual, repetitivo, como a batida de um relógio. Todos os dias o pai ia trabalhar, os filhos iam para a escola - pelo menos era isso que diziam - e a mãe ficava lavando roupa. A sua e a das vizinhas, para aumentar a renda. Nos fundos da casa havia um lamaçal fétido, borbulhante. Exalava um cheiro insuportável. Todos evitavam ir aos fundos da casa para não sentir os restos daquele cheiro que entravam com a a ajuda do vento.

Certo dia a família recebe a visita de Flávio, o advogado. Ele falava em nome de uma grande empresa que queria comprar todo o terreno para a posterior construção de um conjunto de empresariais. O engravatado foi oferecer uma proposta financeira para que a família saísse do local sem disputas judiciais. O pai prontamente ouviu e gostou da proposta. A mãe, idem. Os filhos não se opuseram, principalmente depois de ouvirem que, além da proposta financeira, iriam ganhar uma casa mobiliada, sem custos adicionais, e com esgoto tratado, em outro ponto da cidade.

Negócio fechado. Todos foram comemorar na pizzaria. Não era todo dia que aquilo acontecia. A mãe fez escova no cabelo. O pai fez a barba. A filha usou esmalte pela primeira vez, e o filho tomou banho sem reclamar. Todos prontos, iniciaram a comemoração atravessando a rua, que fica pouco antes de um viaduto, para pegar o ônibus e aí sim chegarem à pizzaria. Durante a travessia, planos para a decoração dos quartos, da sala, e um atropelamento. Um carro, em alta velocidade, atropela o pai e a mãe. Os filhos, que foram empurrados para trás, tiveram apenas arranhões.

A mãe ficou em coma por três anos. Três anos. O pai morreu na hora.

Quando abre os olhos, a mão está rodeada pelos filhos. O menino tirou definitivamente aquele bigode ralo, feio. A menina tirou o aparelho e estava com um lindo sorriso. A mãe sabe, neste instante, sobre seu marido. O pai, marido, morreu. O anônimo. Depois da saída do hospital, em meio à lágrimas, a mãe procura saber o que se passou na vida dos filhos durante esse tempo. Mas quando percebe o caminho que o taxi está tomando, nota que estão indo para o mesmo lugar. O mesmo de sempre, a beira do viaduto. Prédios altos. Imponentes. Mas o lugar ainda fede.

Quando a mãe chega, percebe que o primeiro andar do tecnológico e moderno empresarial é um apartamento residencial. O seu apartamento. Com duas varandas. Uma para a BR que matou o pai e decepou sua vida. A outra para a parte dos fundos, onde a estava a velha lama, que nunca saiu de lá. Os filhos pedira, durante a obra, para a mesma ficar lá. A lama lembrava o pai, que vivia reclamando com eles mesmos para alguém começar a limpar aquela imundice e ir reclamar na prefeitura.

Todos riem do estresse e nervosismo do pai para com a lama. A lama virou da família.
Acarreta lembranças muito boas.

domingo, 6 de novembro de 2011

O Poder da Maior Invenção Humana: O Tempo

O tempo é a maior e mais complexa invenção do homem em toda sua história. E provavelmente nunca será superada. Nem mesmo a utopia da imortalidade conseguirá suplantá-lo. Em virtude de que o tempo engloba até mesmo o imortal. Ser imortal não significa ser atemporal. Nada escapa dessa invenção maior que o amor e que outros baluartes da civilização.

Sempre fui ligado ao passado. Sempre busquei reformar e estudar aquilo que vivi. Tentando, dentro da minha cabeça, fazer um passado diferente. Um passado que, pelo menos para mim, soasse melhor, me trouxesse mais tranquilidade, mais felicidade. Mas quase em todas oportunidades o efeito é exatamente o oposto.

Reconstruir o passado nos dá a oportunidade de ver como não tínhamos a menor capacidade de interpretar certas coisas no momento em que aconteceram, e que como nosso conceito de felicidade - sem dúvida a maior busca humana através do tempo - muda constantemente. Muda por que queremos sempre estar felizes, e para isso é necessária uma constante flexibilidade de sentimentos. Ser feliz não tem nada a ver com regularidade.

Sempre quis que o tempo me deixasse marcas mais visíveis e menos presentes que lembranças. Preferia cicatrizes, onde você pode escolher quando sentí-las, quando tocá-las. Nossas memórias nos comandam, nos levam a uma viagem que não queremos em muitos momentos e, por tabela, acabamos reinterpretando situações que estavam definidas dentro de nós mesmos.

Nada é definido no nosso passado. Ele é a maior representação da mudança.
Pensamos ter o maior controle sobre o passado, mas é o oposto. É ele quem decide quando aparecer, levando tudo pela frente. Destroçando o presente.